FADO
DAS RUAS SEM SOL!!!
Naquela rua, à tardinha,
Já quase nada se via.
Parece que o sol fugia
Daquela rua mesquinha...
Mas tinha prédios imensos,
Entrechocando telhados
Tão altos!, como suspensos
De lá dos céus afastados...
Tinha compridas varandas
De velhos madeiramentos,
Rangendo, embora, em bolandas
Na mão da chuva e dos ventos.
Tinha opulentos bocados
De primaveras cantarias,
Restos de ferros forjados,
E ate brasões e armarias...
E tinha, a meio, em seu nicho,
Nossa Senhora das Dores
Negrinha de tempo e lixo,
Com dois palmitos de flores.
Só nas paredes leprosas,
Tortuosamente empinadas,
Eram pupilas brumosas
As janelas desvidradas...
Nem, pois, que se não dissera,
Já se pudera supor
Que a longa rua não era
Mais larga que um corredor.
Talvez por isso, à tardinha,
Quando perto inda era dia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Perto, que vastas artérias
Patentes ao sol e ao ar,
Nas quais a vida eram férias
Que apetecia gozar!
Gente a cheirar bem, vestida
Com todo o apuro do luxo,
Vinha descendo a avenida,
Parava a olhar o repuxo...
Claros carros cintilantes,
Relampejando metais,
Buzinavam aos passeantes
Seus estridentes sinais.
Dum lado e do outro, que filas
De alegres, frescas moradas!
Que janelinhas tranquilas,
Que vidas bem alojadas...!
Nas montras dos arredores,
Que opulenta exibição
Do que há de bom...!, em primores
Que nem precisos nos são...
E que perfis superfinos,
No calmo azul paternal,
De arranha-céus, com seus hinos
De cimento e de metal!
Só nessa rua, a dois passos,
Só nessa... ou noutras parentes,
Por trás desses vidros baços,
Ou desses vidros ausentes,
Nessa confusa armação
De muros prenhes quais odres
E janelas té ao chão
Florido de coisas podres,
Decerto, ninguém morava!
Decerto, sob esses tetos,
Só a noite divagava
Com seus préstitos de fetos...
E eis, também, porque à tardinha,
Com tanta luz que inda havia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Ora quem tal supusesse,
Bem julgara supor justo.
Mas a miséria — parece
Que tudo arrosta sem custo!
E o certo é que há centos de anos
Que a miséria nua e crua
Com seus viveiros humanos
Escolhera aquela rua:
Debaixo desses telhados
Se instalara, e a seus viveiros,
—Pais e filhos misturados
Como animais em chiqueiros...
A par da miséria, o amor
Prolificara imoral.
E o vício é conservador,
Miséria é tradicional...
Visto que lá se instalaram,
Lá se deixaram ficar.
E até do chão rebentaram
Produtos daquele par!
Se o Progresso ali passara,
Se a Compaixão lá caíra,
Quer um quer outro — enjoara,
Tapara o nariz, fugira...
Mas depois, Doutor Progresso
Viera ate às gazetas
Propor, num nobre arremesso,
Dinamitar tais sarjetas.
E eis que Dona Compaixão
Pregara a necessidade
De se fechar a estação
Com bailes de caridade...
Cumprido assim seu dever,
Qual insistira em voltar
A exercitar seu mister
Em tão sinistro lugar?
E desde sempre, à tardinha,
Inda a luz não se acendia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Sim, na avenida vizinha,
Tudo era moderno e fresco;
Mas essa rua... mantinha,
Mantém o seu pitoresco:
Uma igual turba de párias,
Vadios, trabalhadores,
Meretrizes e operárias,
Falhados e sonhadores,
Há centos de anos se some
Nesses palácios escuros,
E cheira mal, passa fome,
De alto a baixo desses muros.
Nas mesmas águas-furtadas
Há centos de anos há poetas,
E as mesmas gatas pejadas
Têm filhos nas valetas.
Há centos de anos que os tédios
Daquele mundo larvar
Têm, por cada dez prédios,
Uma taberna a chamar...
Há centos de anos que, lassa,
Por entre portas metida,
Faz propostas a quem passa
A mesma mulher da vida.
Sujinho e nu como um bicho,
Há centos de anos que já
No seu caixote do lixo
O mesmo menino está!
Há centos de anos, puídas,
Encardidas, amarelas,
Iguais roupas estendidas
Embandeiram as janelas;
E entre essa roupa, garota,
Da mesma cana pendente,
A mesma camisa rota
Se abre toda a toda a gente...
Por isso, logo à tardinha,
Parece que o sol fugia
Daquela rua sombria,
Onde a vida que se tinha
Nem vivia, e, todavia,
—Mãe Vida, que força a tua! —
Pululava e refervia
Das próprias pedras da rua...
Refervia e pululava
Na sina que em todo o mês
No banco dos réus sentava
Mais um provável freguês...
Nas cenas particulares
De amor, vinho, ódio, desgraça,
Que dos lôbregos andares
Desciam até quem passa...
Na animação das bodegas
Cheias de penumbra, fados,
Guitarradas, e colegas
De fácies de cadastrados...
Na infrene fecundidade
Que, pelos becos vizinhos,
Entornava uma cidade
De gatos e monstrozinhos...
No próprio débil craveiro
Que dera um cravo sem cor,
Que dera um cravo, e o seu cheiro!,
Do fundo daquele horror...
E até na meia cantiga
Que, por sobre esses telhados,
Uma voz de oiro sem liga
Lançava aos céus afastados
Um sonho de rapariga...
José Régio.
Naquela rua, à tardinha,
Já quase nada se via.
Parece que o sol fugia
Daquela rua mesquinha...
Mas tinha prédios imensos,
Entrechocando telhados
Tão altos!, como suspensos
De lá dos céus afastados...
Tinha compridas varandas
De velhos madeiramentos,
Rangendo, embora, em bolandas
Na mão da chuva e dos ventos.
Tinha opulentos bocados
De primaveras cantarias,
Restos de ferros forjados,
E ate brasões e armarias...
E tinha, a meio, em seu nicho,
Nossa Senhora das Dores
Negrinha de tempo e lixo,
Com dois palmitos de flores.
Só nas paredes leprosas,
Tortuosamente empinadas,
Eram pupilas brumosas
As janelas desvidradas...
Nem, pois, que se não dissera,
Já se pudera supor
Que a longa rua não era
Mais larga que um corredor.
Talvez por isso, à tardinha,
Quando perto inda era dia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Perto, que vastas artérias
Patentes ao sol e ao ar,
Nas quais a vida eram férias
Que apetecia gozar!
Gente a cheirar bem, vestida
Com todo o apuro do luxo,
Vinha descendo a avenida,
Parava a olhar o repuxo...
Claros carros cintilantes,
Relampejando metais,
Buzinavam aos passeantes
Seus estridentes sinais.
Dum lado e do outro, que filas
De alegres, frescas moradas!
Que janelinhas tranquilas,
Que vidas bem alojadas...!
Nas montras dos arredores,
Que opulenta exibição
Do que há de bom...!, em primores
Que nem precisos nos são...
E que perfis superfinos,
No calmo azul paternal,
De arranha-céus, com seus hinos
De cimento e de metal!
Só nessa rua, a dois passos,
Só nessa... ou noutras parentes,
Por trás desses vidros baços,
Ou desses vidros ausentes,
Nessa confusa armação
De muros prenhes quais odres
E janelas té ao chão
Florido de coisas podres,
Decerto, ninguém morava!
Decerto, sob esses tetos,
Só a noite divagava
Com seus préstitos de fetos...
E eis, também, porque à tardinha,
Com tanta luz que inda havia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Ora quem tal supusesse,
Bem julgara supor justo.
Mas a miséria — parece
Que tudo arrosta sem custo!
E o certo é que há centos de anos
Que a miséria nua e crua
Com seus viveiros humanos
Escolhera aquela rua:
Debaixo desses telhados
Se instalara, e a seus viveiros,
—Pais e filhos misturados
Como animais em chiqueiros...
A par da miséria, o amor
Prolificara imoral.
E o vício é conservador,
Miséria é tradicional...
Visto que lá se instalaram,
Lá se deixaram ficar.
E até do chão rebentaram
Produtos daquele par!
Se o Progresso ali passara,
Se a Compaixão lá caíra,
Quer um quer outro — enjoara,
Tapara o nariz, fugira...
Mas depois, Doutor Progresso
Viera ate às gazetas
Propor, num nobre arremesso,
Dinamitar tais sarjetas.
E eis que Dona Compaixão
Pregara a necessidade
De se fechar a estação
Com bailes de caridade...
Cumprido assim seu dever,
Qual insistira em voltar
A exercitar seu mister
Em tão sinistro lugar?
E desde sempre, à tardinha,
Inda a luz não se acendia,
Já quase nada se via
Naquela rua mesquinha...
Sim, na avenida vizinha,
Tudo era moderno e fresco;
Mas essa rua... mantinha,
Mantém o seu pitoresco:
Uma igual turba de párias,
Vadios, trabalhadores,
Meretrizes e operárias,
Falhados e sonhadores,
Há centos de anos se some
Nesses palácios escuros,
E cheira mal, passa fome,
De alto a baixo desses muros.
Nas mesmas águas-furtadas
Há centos de anos há poetas,
E as mesmas gatas pejadas
Têm filhos nas valetas.
Há centos de anos que os tédios
Daquele mundo larvar
Têm, por cada dez prédios,
Uma taberna a chamar...
Há centos de anos que, lassa,
Por entre portas metida,
Faz propostas a quem passa
A mesma mulher da vida.
Sujinho e nu como um bicho,
Há centos de anos que já
No seu caixote do lixo
O mesmo menino está!
Há centos de anos, puídas,
Encardidas, amarelas,
Iguais roupas estendidas
Embandeiram as janelas;
E entre essa roupa, garota,
Da mesma cana pendente,
A mesma camisa rota
Se abre toda a toda a gente...
Por isso, logo à tardinha,
Parece que o sol fugia
Daquela rua sombria,
Onde a vida que se tinha
Nem vivia, e, todavia,
—Mãe Vida, que força a tua! —
Pululava e refervia
Das próprias pedras da rua...
Refervia e pululava
Na sina que em todo o mês
No banco dos réus sentava
Mais um provável freguês...
Nas cenas particulares
De amor, vinho, ódio, desgraça,
Que dos lôbregos andares
Desciam até quem passa...
Na animação das bodegas
Cheias de penumbra, fados,
Guitarradas, e colegas
De fácies de cadastrados...
Na infrene fecundidade
Que, pelos becos vizinhos,
Entornava uma cidade
De gatos e monstrozinhos...
No próprio débil craveiro
Que dera um cravo sem cor,
Que dera um cravo, e o seu cheiro!,
Do fundo daquele horror...
E até na meia cantiga
Que, por sobre esses telhados,
Uma voz de oiro sem liga
Lançava aos céus afastados
Um sonho de rapariga...
José Régio.
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