As Duas Canções
do Homem...
Os sons secretos da cítara indiana.
Confesso que compreender
a beleza do todo, permeada pela poesia vestida em considerações oportunas,
comprometidas com a felicidade do ser humano, não é fácil!
Bom lembrar, a quem não sabe, que a cítara é composta de duas camadas de
cordas superpostas, uma sobre a outra, muito próximas, sem nunca se tocarem. A
camada de cima é sensibilizada pelo músico, e a de baixo não pode nunca ser
tocada pelos dedos.
Quem pouco entende dos segredos sonoros pode perguntar-se por
que razão um instrumento musical tem cordas que não são tocadas.
A beleza desse mistério está justamente na harmonia que enlaça
as duas camadas. Os dedos não tocam a de baixo para que suas cordas possam
vibrar pela magia de uma coisa muito mais sutil que os dedos. Tangidas pelos
sons que brotam das primeiras, elas reverberam e fazem nascer uma outra música, diversa daquela que o artista
produziu.
Eis o segredo. Eis a sensibilidade. Olhemos agora para nós. Quem
sabe sejamos cítaras humanas, que vivem dentro de um encanto chamado vida,
provocado pelo carinho criador de Deus; lá dentro, no fundo de nossa essência,
estão as segundas cordas de uma única verdade, que os dedos nunca tocam, mas
que fazem ouvir uma outra voz, a vibrar
pelos escaninhos do silêncio... Vem de lá uma canção imortal, jamais tocada,
mas que, se ouvida, pode dizer muito de nós.
Talvez seja esta a melodia diferente que alguns podem ouvir.
Aqueles que lêem com amor o não-dito das
palavras humanas, separando a mentira da verdade, o joio do trigo, e escolhendo
o bem.
Talvez seja essa música oculta, a melhor definição de amizade. Afinal, o que um amigo
faz senão educar-se para escutar nosso silêncio, que às vezes busca um abraço,
um momento de atenção para aplacar sua melancolia?
Um amigo é também algo mais. É aquele que faz do seu sossego um
recanto confiável, onde o outro pode guardar seus segredos e não ter medo de
perdê-los. Um amigo é aquele onde nossa
segunda pauta encontra eco, porque sabe que no âmbito da amizade, a solidão é
um convite ao recolhimento, para que sejamos ouvidos, para que possamos
reverberar.
Nos braços de um amigo, nossa solidão se dilui no suave aroma da
partilha.
Você, a quem muitos consideram verdadeiro irmão, pode treinar os
ouvidos do sentimento para escutar uma nova melodia. Preste, porém, menos
atenção no que as pessoas irão tocar e mais nos sons daquelas cordas que nunca
serão tangidas.
Aproveite, também para apreciar a beleza da música que brota de
todo lugar.
Aí escutará a segunda
canção de Deus, convidando-o a que habite uma realidade nova: a de ser,
finalmente, um bom e melhor amigo, que com muito amor, aprendeu a chamar os
outros para fora da solidão.
( Carlos Augusto Abranches,
1993, na Revista Reformador )
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